A review by adrianascarpin
Uma volta pela lagoa by Juliana Krapp

4.0

Uma Volta pela Lagoa da Juliana Krapp já estava no meu radar desde que foi publicado pelo Círculo de Poemas, mas depois que foi indicado finalista ao Oceanos não tinha mais razão de adiar sua leitura.
E que achado! Krapp escreve há décadas, tendo sua poesia esparsa aqui e alí, mas esse é seu primeiro livro completo e é maravilhoso, nunca cai numa poética fácil, suas imagens são complexas, quando não arrebatadoras.


As bonecas

Quando meu bisavô retornou da roça à casa
naquele dia o primeiro dia
de sua vida de casado
não encontrou a mesa posta
camisas engomadas cômodos limpos

Em vez disso
encontrou minha bisavó brincando de boneca
o que tem sido narrado às risadinhas
pelas gerações seguintes
até a história chegar a mim eu que desde criança
tento imaginar como eram aquelas bonecas
com as quais brincava minha bisavó

Se por acaso tinham pele de trapo encardido e vísceras de palha (decerto)
se tinham cabelos
feitos de cabelos de milho (decerto)
se os olhos eram arregalados (decerto)
como costumam ser os olhos das bonecas de quase todos os tempos e lugares e como
provavelmente eram também os olhos da minha bisavó
ao ser estuprada naquela mesma noite a primeira noite
de sua vida de casada

Só depois de adulta
pude refletir sobre como é desafiador ceder
à função nomeadora da linguagem
que os poetas em geral e os contemporâneos em particular
preferem rechaçar em benefício
do jogo de sombreados que amplia o mistério em torno disso
que chamamos arte poética

Nunca poderei saber
que nomes minha bisavó atribuía às suas bonecas
tampouco que tipo de encenações executava
sobre a terra batida de sua nova sala
na companhia de filhas ou amigas ou mães ou irmãs imaginárias
a quem talvez servisse chá ou sopa imaginária
enquanto no fogão a lenha logo ao lado nenhum fogo
crepitava nenhuma panela cozinhava
comida de verdade como decerto era
a expectativa de meu bisavô
enquanto lavrava o solo e pastoreava o gado

Talvez nunca consiga me decidir
se podemos nomear de estupro o fato
de que há tantas décadas
o casal composto por um homem de trinta anos
e uma menina de catorze
mergulhou em sua primeira noite na casa
cercada por escuridão e ruídos da floresta
por montanhas contendo pastos
pastos se desdobrando sobre a mata
nascentes e córregos e represas e açudes
atiçando a cobiça pela terra
e se infiltrando no sono

Tenho dificuldades com nomes
sejam eles próprios ou comuns o que delimitam
jamais irá representar a trama de volúpias o impulso
de mutações que se avolumam no escuro
indecifráveis cruzamentos de sons e de águas
correndo do lado de fora
em contraste com o abandono das bonecas
de olhos esbugalhados a encarar
as ripas do teto ou o barro do chão
tão semelhantes à minha bisavó
e seus dois olhos redondos
fitando
aquela noite a primeira noite
em sua nova cama

Quando meu bisavô foi assassinado
minha bisavó não tinha mais catorze anos já tinha
dezessete e decerto aprendera
a alimentar a cerzir a esfregar e a amamentar
pois tinha dois filhos
naquela noite em que se casou de novo
e teve de aprender também a ler os jornais em voz alta
enquanto acendia o fumo
para seu novo porém segundo marido
que gostava muito de saber as notícias mas não apreciava
lê-las com os próprios olhos admito
que essa parte da história não me interessa tanto as bonecas
em minha memória inventada já haviam saído de cena

Prefiro a essa altura pensar no piano
que minha mãe teve que vender aos quinze, convencida a se casar
ou na carta de despedida que minha tia-avó deixou e que foi rasgada em pedacinhos
quando, aos vinte, fugiu do marido com um marinheiro de baixa patente
e ordenaram que fosse dada como morta
para que ninguém
no futuro
jamais pudesse saber seu nome