A review by katya_m
Espelho Partido by Mercè Rodoreda

"Saber a hora exacta é o que há de mais importante na vida. Um homem é feito de segundos, de minutos."

Sou uma pessoa particularmente nostálgica, e sou uma leitora que procura a nostalgia nos livros que lê - sobretudo uma nostalgia que provenha da sensibilidade feminina. E a catalã Mercè Rodoreda, que acabei por descobrir num feliz acaso, ofereceu-me exatamente isso.
Espelho Partido é a narrativa perfeita para quem, como eu, fica agarrada a uma saga familiar daquelas que não só são brilhantes (sobretudo, estruturalmente brilhantes), mas ainda deixam um sorriso no rosto por uma espécie de sensação de dever cumprido não só em cada etapa, mas também ao atingir a meta final.

"Sento-me à minha mesa na hora em que os pavões gritam e penso no meu mundo. Pequeno: uma bola de ouro que não é maior do que uma laranja. A paisagem ponho-a eu, eu dou-lhe vida."

Rodoreda fala-nos da passagem do tempo, de decadência, de morte e metamorfose. Ao longo de três gerações, várias personagens são postas à prova por vicissitudes várias. E todas, de uma ou outra forma, desaguam na busca de uma redenção afetiva.
Teresa Goday, a matriarca, cujas raízes são as mais humildes que se possam imaginar, procura legar uma época e uma forma de estar que não lhe foram oferecidas à nascença, mas às quais se afez pelo próprio pulso; entre filhos legítimos e ilegítimos procura assegurar uma estabilidade que uma Espanha, à beira da guerra civil, está prestes a deixar de consentir; esses filhos, separados pelo orgulho dos pais, crescerão maculados de uma frieza que desembocará na ira dos netos, que conspiram entre si para eliminar o elo mais fraco. A morte de uma criança (essa criança) será a alavanca psicológica para todo um desenrolar da narrativa assente numa intensa caracterização de personagens e em múltiplos símbolos de quotidiano que lhe fornecem uma magia muito própria.

"Tinha visto tanta miséria, tantas pessoas vis e tanto de tudo que o seu prazer era deitar migalhas de pão aos pardais que, para além de fugirem quando o viam, lhe sujavam a varanda."

Entre muitos segredos (como os que tem qualquer família), perpassam vidas vividas intensamente, apaixonadamente, "onde toda a gente se apaixona por quem não se deve apaixonar e quem não tem amor procura que lho deem seja como for: por uma hora ou por uns instantes."

Há também uma grande dose de frustração e um véu de tristeza muito subtil que exsuda da nostalgia desta obra - muitos amores frustrados entre pais e filhos, entre amantes, entre estranhos, mas "não serão tristes todas as vidas, seja qual for a forma em que sejam vividas?"

Ainda assim, a narrativa é intricada, doce, bela, poética, feminina e capaz de evocar a natureza com uma facilidade tremenda. Entre personagens memoráveis, o destaque maior nesta saga acaba por recair sobre a casa, o lar, que acolhe várias gerações de uma família de pessoas que "não são boas nem más: são como as pessoas que passam ao nosso lado todos os dias da semana" e que, no seu todo, compõe a imagem que se pretende que o espelho, agora partido, reflita.
É nessa familiaridade que encontramos conforto, na proximidade destes homens e mulheres que, como nós, procuram um sentido para a sua vida, procuram a satisfação dos seus desejos, procuram o alimento das suas paixões, procuram, realmente, EXISTIR.

"Ali dentro tinha vivido gente. Da vaidade, do ódio, dos pedaços de amor restava o pó e um triste espectáculo de esplendor e esquecimento."