A review by rolandosmedeiros
Apenas uma Mulher by D.H. Lawrence, José J. Veiga

3.0

Apenas uma Mulher (A Imagética da Raposa e a Ilusão da Felicidade)

“Mas o fim do arco-íris é uma fenda sem fundo na qual podemos cair e ficar caindo para sempre, e o horizonte azul é um abismo de nada que pode nos engolir e engolir todos os nossos esforços, e ainda continuar vazio. Nós e nossos esforços. Eis a ilusão da felicidade atingível!’’

The Fox, ou, Apenas uma Mulher, como foi traduzido, é uma novela psicológica de noventa e poucas páginas; a decisão da tradução do nome, percebe-se após a leitura, mostra ser deliberada e dotada de significado: é evidente a mudança completa na narração do terço final do livro, demarcando claramente duas linhas argumentativas. A Raposa, portanto, se levado ao pé da letra, trata-se da maior e melhor parte da obra; enquanto Apenas uma Mulher, trata-se de seu desfecho, que difere formalmente. Apesar de ser possível tratar ambas separadas, a exemplo dessa resenha, na leitura, no entanto, as partes são inerentes e indissociáveis uma da outra.

A Raposa, representa a construção narrativa, a imagética do animal, a vida serena (mas não fácil) de duas mulheres em uma pequena fazenda durante um duro momento social do final da Primeira Guerra Mundial. Somos lentamente inseridos na vida dessas duas personagens com uma construção morosa e limitada pelo narrador, que vai nos enlevando apenas petiscos de informação, num slow burn narrativo delicioso.

A primeira mudança se dá quando Nellie (a mais trabalhadora, mulher forte e carpinteira) começa a ser perturbada por uma raposa — ou, uma palavra melhor, mesmerizada. O olhar da raposa penetra sua alma, invade seus sonhos, e ela torna-se idílica, obcecada pelo animal; a prosa aqui, adquire um tom poético, sobrenatural, quase místico, e tenho-me como a melhor parte da novela:

''March olhava tudo isso, via tudo isso, mas na verdade não percebia nada. Ela ouviu Banford conversar com as galinhas lá longe — mas, na verdade, não ouviu. O que estaria ela pensando Ninguém sabe. A consciência de March estava, por assim dizer, em suspenso.

Ela baixou o olhar e, de repente, viu a raposa. O animal a encarava. O focinho estava abaixado, mas os olhos, erguidos. Os olhos da raposa e os da moça se encontraram. A raposa a reconheceu. March ficou sem ação. Ela percebeu que a raposa a reconhecera. O animal olhou March nos olhos, e ela sentiu que a alma lhe fugia. A raposa a conhecia, e não estava intimidada.''


Esse tom se estende, inclusive, durante a chegada inesperada de um soldado de dezoito anos na casa. Curiosamente vulpino, educado, e vago. A partir daí, somos levados num mergulho psicológico, de questões de gênero, repressão sexual, ciume, tensão (mental e carnal); e também, é a partir daqui que Lawrence se despende dando mais desenvolvimento às personagens. A reta final da novela, no entanto, demasiadamente (e desnecessariamente) acelerada, faz parecer que não, mas, a construção é viva e intrincada, todos personagens são dotados sentimentos próprios, ambíguos, não facilmente compreensíveis, intimamente complexos; um ponto a se destacar na escrita do Lawrence nessa novela.

No meio dessa ‘fábula’ moderna, da materialização da expressão idiomática (the fox in the henhouse - que já dá pistas do desfecho), da imagética, da forma e do estilo, ainda há, para além, uma narrativa sobre dependência, submissão, ideal de felicidade e inalcançabilidade. É trágico, mas o Lawrence não toma partidos, e não exime ninguém da culpa. Ele se mantém afastado, e faz-nos vislumbrar um abismo bem específico: o falso contentamento, o revés que é a felicidade depender de fatores externos.

''Se Jill tivesse se casado, seria a mesma coisa. A mulher se esforçando para fazer o homem feliz, esforçando-se em seus próprios limites por fazer o bem-estar de seu mundo. E sempre colhendo fracassos. Pequeninos sucessos úteis relacionados a dinheiro e carreira. Mas justamente no ponto em que o sucesso era mais desejado, no angustiado esforço de fazer algum amado ser humano feliz e perfeito, aí o fracasso era mais catastrófico. Queremos fazer o ser amado feliz, e a felicidade dele parece sempre atingível. Basta fazer isso, isto e aquilo. Fazemos isso, isto e aquilo com toda boa-fé, e, de cada vez, o fracasso parece mais horrível. Podemos nos dilacerar de amor e nos desgastarmos até os ossos, e as coisas vão sempre de mal a pior, de mal a pior na busca da felicidade. O terrível engano da felicidade.''

Justamente por se manter afastado, nunca expor além do necessário, nunca sabemos se Nellie e Jill são um casal sáfico, um casal bissexual, um proto-casal inconsciente da própria relação, ou, apenas amigas íntimas que se unem na independência (um dos temas da novela, e minha interpretação vai por esse lado; uma união que se pauta na independência feminina, e não necessariamente na exclusão masculina).

Abrem-se as interpretações, o que é bom, de certa forma; de outra, abre caminhos exageradamente idealizados — mais por culpa dos leitores do que da obra — que na minha humilde concepção, não estão lá, ou não estão claros o suficiente para que se crave nem uma coisa nem outra.

Por exemplo, não entendo as múltiplas resenhas aqui no site que pontuam a história como misógina. É explicito, literal, que o Henry é vil, dotado de sentimentos amorosos ao mesmo tempo honestos e disformes, com uma visão terrível, manipulador, possessivo, premeditado, para fins amorosos e materiais, a personificação da raposa fabular que adentra a choupana e devora as galinhas. A maneira com que é narrado apenas demostra a acuidade com que o Lawrence constrói as personagens, e, nem com a invasão final de um narrador onisciente (que por sinal quebra a narrativa e se torna um problema fruto da perda de fôlego da prosa), e o longo monólogo final, onde o narrador, cristalina e transparentemente explora a passos largos a psique dos dois personagens, as pessoas não conseguem entender, ou dissociar o personagem literário do escritor. Ou, a narração, da opinião. Chega a ser alarmante e problemático, exemplifica que o analfabetismo literário persiste, e obviamente não só no Brasil, já que a maioria das resenhas que li e seguem essa linha foram escritas em inglês.

''Quanto mais estendemos a mão para a flor fatal da felicidade, que balança tão azul e linda numa fenda logo adiante, com mais pavor percebemos o perigo do precipício terrível, no qual inevitavelmente cairemos se nos esticarmos um pouco mais. Vamos apanhando uma flor após outra — e nunca apanhamos a flor. A flor mesma — seu cálice é um abismo horrível e sem fundo. Essa é a história da busca da felicidade, seja a nossa, seja a de outro por nós buscada. Ela termina, como sempre, na sensação apavorante daquele nada no qual inevitavelmente cairemos se nos esticarmos um pouquinho mais.''

Por fim, algumas notas adicionais e aleatórias:

Foi lido numa sentada, ou melhor, numa deitada; a tradução é de um famoso autor brasileiro, J.J Veiga, que achei bastante boa, como verá pelas quotes. No entanto, lendo as citações em inglês, senti que no idioma original flui muito melhor a aura de ‘’fábula recontada’’, de misticismo, de prosa poética, e, além disso, não é nada complicado de ler, ao menos foi o que me pareceu, para os próximos do autor vou buscar a versão original.

A fama de escritor polêmico, da sexualidade exagerada e mão pesada, é pouquíssimo vista aqui, que faz com que essa novela seja provavelmente uma boa porta de entrada para o autor. Meus problemas com a história foram unicamente estéticos, de construção poética, e não temáticos: geralmente a crítica que se faz a ele é inversa a minha. Obviamente, eu não entreguei tudo nessa resenha, o motivo da história traduzida se chamar “Apenas uma Mulher’’, por exemplo, você deve ler e descobrir.

É uma leitura válida, tanto pelo fruir literário quanto pela discussão suscitada, interesse-se você pela estética ou pelas questões mais filosóficas, de relação humana.