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A review by katya_m
O Último Cais by Helena Marques
"Marcos vivia, então, na Penha, numa casa sobranceira ao porto, instalara cadeiras de deck na varanda, estendia-se ao sol olhando os barcos através dos seus potentes binóculos, velho marinheiro na ponte de um navio ancorado, à espera de chegar ao seu último cais."
O Último Cais é bem capaz de ser o romance mais belo que me foi dado ler até aos dias de hoje. Com a ilha da Madeira e a ameaça do dealbar republicano como pano de fundo, traça a história da família Vaz Lacerda, e permite toda uma reflexão histórica e social que não se esgota no tempo da narrativa.
"Feliz Marcos que pode quebrar a monotonia e fugir, ser médico da Armada por um ano, sempre que a claustrofobia da ilha atinge o ponto de sufocação. E eu?, pergunta-se Raquel, debruçada à janela da casa do Vale Formoso, à janela onde se debruça todos os dias de toda a sua vida. E eu? Para mim, que nasci mulher, que quis casar e ser mãe, para mim nada mudou desde Penélope. O meu quinhão é esperar. Dentro de casa. Fiando. Ou olhando o mar. Sorri, apesar de tudo."
Como em muitas narrativas de anos 80/90, também o texto de Helena Marques reflete uma preocupação com o tempo feminino, os papéis de género, a liberdade de escolha das mulheres, as implicações de assumir ou não o estatuto de mulher, mãe, cuidadora:
"O sexo feminino, divaga Raquel com subversiva inocência, tem afinal duas componentes, as mulheres e as senhoras. Até nos actos de nascer, parir ou morrer há diferenças - ou injustiças?"
"As velhas meninas não têm idade. Pertencem àquele grupo anónimo,(...)e marginal das mulheres sem marido. Não casaram por razões várias, porque perderam a frescura à cabeceira de pais doentes, porque perderam a virgindade num escândalo impossível de ocultar, porque são demasiado feias ou demasiado pobres ou demasiado insípidas, por qualquer dessas razões que nunca chegaram a sê-lo para um homem, haverá algum solteirão que o não seja por vontade, mesmo sendo feio, insípido e estúpido, conquistador nem se fala, até pobre, quando é que um homem pobre não se casa(...)?"
Entrementes, não lhe escapa o retrato de época. O Último Cais está pejado de maravilhosas descrições da ilha, de factos históricos discretos e deliciosos:
"«Li a bordo, num jornal de Capetown», recorda Marcos, «que está a fazer grande sucesso na América uma nova aplicação do invento de Edison,»(...)segundo o jornal, o fonógrafo reproduziu o hino do centenário da independência dos Estados Unidos cantado por coros afinadíssimos, tal qual fossem vozes humanas.»"
(...)
«Ah, mas eu li uma coisa ainda mais espantosa numa revista hoje chegada de Londres», interrompe Rodolfo, «parece que o senhor Bell, o inventor do telefone, prepara um maquinismo que permitirá ver pelo telégrafo, é assim mesmo que a revista descreve o invento."
Num périplo geracional, Helena Marques ancora a sua narrativa num eixo de personagens femininas heróicas e míticas: Raquel qual Penélope que aguarda o retorno do esposo amado a casa; Marta e Maria, duas faces da mesma moeda que se desdobram entre o mundo ativo e o contemplativo; Catarina, virgem e doutora... Cada personagem neste texto parece ter o seu doppelgänger simbólico.
E é através destas mulheres que a autora oferece aos leitores uma perspectiva privilegiada dos espaços murados que são a ilha, a casa, o casamento em finais de século XIX - não deixando de insinuar que à clausura se opõe a vontade destas mulheres por mais e melhor, conquistando a pouco e pouco, e a suas expensas, para as suas descendentes, a liberdade e igualdade que anseiam viver.
"(...)como era fácil falar a uma médica de problemas de mulheres, de menstruações dolorosas, de menopausas inquietantes, de gravidezes indesejadas, de virgindades a perder em misteriosas noites de núpcias. E como era, por si só, tão terapêutico poder falar, falar num lugar seguro e inviolável mas que não era o confessionário com o seu ancestral clima de temor, falar a outra pessoa que não um padre, um homem-padre de obtusa compreensão, sobre misérias da vida conjugal, sobre a violência e a frequente humilhação implícitas nesse dever que a Igreja declara santo e irrecusável, «nunca uma mulher se negará a seu marido»."
Por qualquer estranha razão, é-me muito mais fácil analisar obras pelas quais não sinto afeição, muito mais simples sondar significados e mensagens nos livros cuja história me deixa indiferente. Com este O Último Cais não sobram palavras. A beleza, a riqueza destas duas centenas de páginas supera qualquer bem intencionada tentativa de crítica.
O Último Cais é bem capaz de ser o romance mais belo que me foi dado ler até aos dias de hoje. Com a ilha da Madeira e a ameaça do dealbar republicano como pano de fundo, traça a história da família Vaz Lacerda, e permite toda uma reflexão histórica e social que não se esgota no tempo da narrativa.
"Feliz Marcos que pode quebrar a monotonia e fugir, ser médico da Armada por um ano, sempre que a claustrofobia da ilha atinge o ponto de sufocação. E eu?, pergunta-se Raquel, debruçada à janela da casa do Vale Formoso, à janela onde se debruça todos os dias de toda a sua vida. E eu? Para mim, que nasci mulher, que quis casar e ser mãe, para mim nada mudou desde Penélope. O meu quinhão é esperar. Dentro de casa. Fiando. Ou olhando o mar. Sorri, apesar de tudo."
Como em muitas narrativas de anos 80/90, também o texto de Helena Marques reflete uma preocupação com o tempo feminino, os papéis de género, a liberdade de escolha das mulheres, as implicações de assumir ou não o estatuto de mulher, mãe, cuidadora:
"O sexo feminino, divaga Raquel com subversiva inocência, tem afinal duas componentes, as mulheres e as senhoras. Até nos actos de nascer, parir ou morrer há diferenças - ou injustiças?"
"As velhas meninas não têm idade. Pertencem àquele grupo anónimo,(...)e marginal das mulheres sem marido. Não casaram por razões várias, porque perderam a frescura à cabeceira de pais doentes, porque perderam a virgindade num escândalo impossível de ocultar, porque são demasiado feias ou demasiado pobres ou demasiado insípidas, por qualquer dessas razões que nunca chegaram a sê-lo para um homem, haverá algum solteirão que o não seja por vontade, mesmo sendo feio, insípido e estúpido, conquistador nem se fala, até pobre, quando é que um homem pobre não se casa(...)?"
Entrementes, não lhe escapa o retrato de época. O Último Cais está pejado de maravilhosas descrições da ilha, de factos históricos discretos e deliciosos:
"«Li a bordo, num jornal de Capetown», recorda Marcos, «que está a fazer grande sucesso na América uma nova aplicação do invento de Edison,»(...)segundo o jornal, o fonógrafo reproduziu o hino do centenário da independência dos Estados Unidos cantado por coros afinadíssimos, tal qual fossem vozes humanas.»"
(...)
«Ah, mas eu li uma coisa ainda mais espantosa numa revista hoje chegada de Londres», interrompe Rodolfo, «parece que o senhor Bell, o inventor do telefone, prepara um maquinismo que permitirá ver pelo telégrafo, é assim mesmo que a revista descreve o invento."
Num périplo geracional, Helena Marques ancora a sua narrativa num eixo de personagens femininas heróicas e míticas: Raquel qual Penélope que aguarda o retorno do esposo amado a casa; Marta e Maria, duas faces da mesma moeda que se desdobram entre o mundo ativo e o contemplativo; Catarina, virgem e doutora... Cada personagem neste texto parece ter o seu doppelgänger simbólico.
E é através destas mulheres que a autora oferece aos leitores uma perspectiva privilegiada dos espaços murados que são a ilha, a casa, o casamento em finais de século XIX - não deixando de insinuar que à clausura se opõe a vontade destas mulheres por mais e melhor, conquistando a pouco e pouco, e a suas expensas, para as suas descendentes, a liberdade e igualdade que anseiam viver.
"(...)como era fácil falar a uma médica de problemas de mulheres, de menstruações dolorosas, de menopausas inquietantes, de gravidezes indesejadas, de virgindades a perder em misteriosas noites de núpcias. E como era, por si só, tão terapêutico poder falar, falar num lugar seguro e inviolável mas que não era o confessionário com o seu ancestral clima de temor, falar a outra pessoa que não um padre, um homem-padre de obtusa compreensão, sobre misérias da vida conjugal, sobre a violência e a frequente humilhação implícitas nesse dever que a Igreja declara santo e irrecusável, «nunca uma mulher se negará a seu marido»."
Por qualquer estranha razão, é-me muito mais fácil analisar obras pelas quais não sinto afeição, muito mais simples sondar significados e mensagens nos livros cuja história me deixa indiferente. Com este O Último Cais não sobram palavras. A beleza, a riqueza destas duas centenas de páginas supera qualquer bem intencionada tentativa de crítica.