A review by katya_m
A Última Fugitiva by Tracy Chevalier

Fitou o homem. Era de altura e constituição medianas, com cabelo crespo e faces largas. Estava descalço e vestido com roupas coçadas e sujas. E esta era toda a informação que conseguia absorver, ou sabia como absorver, pois não estava familiarizada com os traços fisionómicos dos negros o suficiente para conseguir avaliá-los, compará-los ou descrevê-los. Não sabia se o homem estava assustado, zangado ou resignado. Aos seus olhos, era apenas negro.

Com um pano de fundo delicado como o é a abolição da escravatura, a fuga dos escravos dos estados do sul e o prenúncio da guerra civil, destaca-se a luta de uma mulher para encontrar o seu lugar num país estrangeiro e hostil. Para o conseguir, procurará trazer a reposta a questões que a assaltam desde " em que assenta a fragilidade dos laços que nos ligam" ou de onde vem o "sentido de comunidade" numa narrativa compassiva à qual o seu tom protetor de heroína empresta um cunho muito próprio.

O Ohio 'tá cheio de caçadores de escravos, vêm do Kentucky e da Virgínia pra tentar levar os negros de volta pròs seus proprietários. Há muitos escravos fugidos que passam por aqui, a caminho do Canadá. Na verdade, há muito trânsito no Ohio, pra um lado ou prò outro. Diabo, uma pessoa põe-se num cruzamento e é vê-los passar. Do leste prò oeste, tens os colonos à procura de mais terra. Do sul prò norte, há escravos fugidos em busca da liberdade. É engraçado, ninguém quer ir prò sul ou pra leste. É o norte e o oeste que inspiram algum tipo de promessa.

Desterrada num meio onde a sobrevivência impera sobre todas as coisas, Honor Bright (uma jovem quaker inglesa em idade casadoira) tem de aprender a conviver com os códigos e as regras conduta de uma América dividida na qual amigo e inimigo se fazem anunciar por sinais mínimos e imperceptíveis:

O escravo tinha o rosto ferido, a roupa rasgada, mas, quando Donovan partiu, os olhos dele fitaram os dela por um breve momento. Donovan não viu essa troca de olhares, mas Jack viu. Olhou de relance para a mulher, e ela baixou os olhos. Até o olhar se tinha tornado perigoso.

O seu questionamento, sintoma de uma viagem de auto descoberta, vai da inconstância da vida em comunidade e da dificuldade em criar raízes ao sentido de pertença e à união familiar, que Honor não parece conseguir encontrar:

(...)não me sinto enraizada. É como se, como se estivesse a flutuar e os meus pés não tocassem no chão. Em Inglaterra, eu sabia onde estava e sentia-me fixa naquele lugar.
(...)Isso é o Ohio - disse a Sra. Reed. Muitas pessoa diz o mesmo.
- Toda a gente passa p'lo Ohio só pra chegar a outro lugar - acrescentou Belle. - Os foragidos vão pra norte; os colonos prò oeste. Conheces alguém e nunca tens a certeza se vais encontrar essa pessoa no dia seguinte. No dia seguinte, no mês seguinte ou no ano seguinte já pode ter partido.


Sem se esgotar em si mesma, a sua busca continua através da dissecação dos princípios que regem a sociedade, a comunidade e os indivíduos:

Tinha começado por um princípio claro nascido de uma vida inteira a sentar-se em silenciosa expectativa: a de que todas as pessoas são iguais aos olhos de Deus e, como tal, não devem ser escravizadas umas pelas outras. Todo e qualquer sistema de escravatura deve ser abolido. Parecera-lhe simples em Inglaterra; e no entanto, no Ohio, esse princípio era minado por argumentos económicos,circunstâncias pessoais e um preconceito há muito enraizado e que ela pressentia mesmo entre quakers. Era fácil imaginar o banco dos negros na Casa de Reunião de Filadélfia e sentir-se indignada; mas que será que ela própria se sentiria realmente confortável s ao lado de uma pessoa negra? Era capaz de ajudá-los, mas não os se se sentasse conhecia como pessoas. (...)
Quando um principio abstrato se enredava na vida quotidiana, perdia a sua clareza e acabava por comprometer-se e fragilizar-se.


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Julgas que, só porque os Quakers dizem que os homens são todos iguais aos olhos de Deus, isso significa que sejam iguais aos olhos uns dos outros?

...a religiosidade e a espiritualidade:

-Há uma coisa que gostava de saber sobre os Quakers - disse baixando o jornal.
Honor levantou os olhos.
- Vocês sentam-se todos juntos, calados, não é? Sem hinos, nem preces, nem um pregador pra vos fazer pensar. Porquê?
- Estamos à escuta.
- De quê?
- De Deus.


E, mais importante de tudo, o questionamento acerca das nossas expectativas e das nossas limitações enquanto seres imperfeitos, movidos por interesses, valores e ideias díspares:

A mulher chamava-se Virginie. Durante toda aquela noite que Honor passara com ela na floresta e nos campos, não lhe ocorrera perguntar-lhe o nome. Na verdade, nunca perguntara o nome a nenhum dos foragidos. Agora, perguntava-se porquê. Talvez não tivesse querido personalizá-los dessa forma. Sem nomes, era mais fácil deixá-los desaparecer da sua vida.

Com pormenores deliciosos, representativos da feminilidade, da comunhão e da transição da infância para a idade adulta em alta evidência na narrativa, atuando como pequenos retalhos numa enorme manta - sejam eles a costura, o patchwork, ou a produção de conservas -, podemos definir A Última Fugitiva como um longo desfiar de reflexões acerca de preconceitos, posturas e atitudes que assumimos ou não, que confrontamos ou não, que aceitamos ou não - e, se não aceitamos, procuramos (se tivermos coragem) mudar: para melhor.