A review by katya_m
Escadas de Incêndio by Anaïs Nin

Anaïs Nin será, por força da classificação"erótica", das escritoras mais subestimadas da literatura de século XX - com algumas fortíssimas exceções durante o seu tempo de vida. Posto isto, à força de alerta, é inevitável que me repita sempre que falo da sua obra - ela prima por isso mesmo: existe um foco, um cerne comum em toda a sua escrita.

“The quest of the self through the intricate maze of modern confusion is the central theme of my work.”
(Anais Nin, Two Cities, Paris, 1959)

As suas personagens fragmentadas refletem uma sociedade moderna feita de retalhos e colagens várias. As suas mulheres são mulheres angustiadas e feitas de dualidades e paroxismos com que hoje nos identificamos mais completamente. Presas num limbo entre o sonho e a vida, sofrem frequentes revelações místicas, autênticos êxtases religiosos de cada vez que recuperam uma peça perdida da sua construção pessoal.

De certa forma, as suas criações refletirão as suas demandas enquanto mulher no mundo, refletirão os seus anseios por uma liberdade mais completa e uma igualdade que, e quando posta perante os homens, nunca consegue realmente alcançar.
Por isso mesmo, não raras vezes, Nin ousa criar paralelos míticos com as suas personagens e faz desfilar perante nós figuras que se metamorfoseiam em Medusa, Fauno, Centauro...

"A angústia era uma mulher sem voz gritando num pesadelo."
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Fortemente influenciada pelos movimentos avant-garde europeus, domina tanto o surrealismo quanto a psicanálise freudiana, e produz construções em que aborda os instintos primários da humanidade através de uma prosa tão próxima da poesia que dói não poder estampar pelas paredes desse mundo fora as passagens dos seus livros!
E assim, acaba por criar personagens que se procuram encontrar pelo amor, pela união das formas, mas também pela união de fragmentos de que todos somos compostos, pela unidade erótica.

"Os anseios femininos e maternais estavam nela todos confundidos"
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Em Escadas de Fogo, escolhe, uma vez mais, abordar a condição da mulher, as dualidades de género, as dualidades de comportamento e de emoção. Para isso cria, Lilian, eterna representante da inocência em busca, a todo o custo, da unidade completa. E assim, narrativa fora, a sua Lilian (a própria Anaïs, decerto, e tantas outras mulheres ao longo dos tempos) procura recuperar uma identidade dispersa por força das circunstâncias - enquanto isso criando ligações múltiplas que dão azo a tantas outras narrativas de busca paralelas à sua.

"Logo que se sentou ao pé dele, ele reassumiu imediatamente um aspecto de miragem: pálido e oblíquo como se viesse de um outro mundo. Apropriou-se da armadura e das defesas da mulher, e ela assumiu as do homem. Lillian era a amante seduzida pelo obstáculo e pelo sonho. Gerard observava o ardor dela, sentindo um deleite feminino diante daquele fogo todo que a sedução atiçava. (...)
Gerard estava fascinado e amedrontado. Corria o perigo de ser possuído. E porque é que isso era um perigo? Porque ele já era possuído pela mãe, e ser possuído duas vezes era o mesmo que ser aniquilado."
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Ao longo do livro, os vários personagens debatem questões de poder, posse e papéis familiares e sociais. Cada um, a seu modo, anunciando-se como um representante das nossas ânsias, questionamentos e preocupações contemporâneas.

"-(...) Djuna, já alguma vez. reparaste que os homens não ficam magoados quando não conquistam uma mulher a quem fizeram a corte? Mas a mulher fica. Quando a mulher se arma em Don Juan e lhes faz a corte, se por acaso o homem recua, ela fica, de certo modo, mutilada.
-Sim, já reparei nisso. Suponho que seja uma espécie de culpa. É natural para um homem ser ele o agressor, por isso aceita bem a derrota. Para a mulher isso é uma transgressão, e por isso deduz que a derrota é causada pela agressão. Até quando se envergonharão as mulheres da sua força?"
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Mas, Anaïs Nin não se fica pela sugestão de debate e assume uma posição firme perante a feminilidade e a procura do verdadeiro significado de feminilidade como mais ninguém o ousou fazer até então. Aborda questões culturalmente sensíveis, trata com despudor - e de forma quase clínica - temas como o incesto, o poliamor, a bissexualidade entre muitos outros.

"O delírio de o abrigar, cobrir e defender fê-la desdobrar por cima dele a sua força como um imenso tecto estrelado, e a dilatada imensidão da mãe infinita substituiu-se à imagem normal do homem cobrindo a mulher."
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A sua leitura resulta sempre numa experiência quase etérea e espiritual - ajudada pelas imensas referências e inferências às várias artes. Mas, sobretudo, a sua escrita obriga-nos a tomar o lugar das suas Lilian, Sabinas, Djunas etc. e a não nos isentarmos de sentir a mesma necessidade de completude que elas sentem.