A review by rolandosmedeiros
Nada a Temer by Julian Barnes

5.0

Spoiler "Receio ser como aquele meu amigo que, ansiando pela morte, nos confidenciava incessantemente que conseguira obter e engolir comprimidos suficientes para se matar, mas se encontrava agora numa agitação ansiosa, porque os seus atos podiam causar problemas a uma enfermeira. Receio ser como aquele homem de letras de uma cortesia inata, que conheci e que, ao ficar senil, começou a falar constantemente à mulher nas fantasias sexuais mais extremas, como se isso fosse o que secretamente sempre desejara fazer-lhe. Receio ser como Somerset Maugham octogenário, que baixava as calças atrás do sofá e defecava no tapete (apesar de isso me fazer lembrar alegremente a minha infância). Receio ser como aquele meu amigo idoso, homem ao mesmo tempo refinado e cheio de melindres, cujo olhar mostrava um pânico animal quando a enfermeira do lar anunciava, diante das visitas, que estava na hora de mudar a fralda. (...) Receio o cateter e o elevador de escadas, o corpo incontinente e o cérebro devastado. Receio o destino de Chabrier/Ravel, não saber quem fui nem o que fiz. Talvez Stravinsky, na velhice extrema, tivesse esses finais em mente quando chamava do quarto a mulher ou algum membro da família. «De que precisas?», perguntavam-lhe. «De ter a certeza da minha própria existência», respondia. E a confirmação podia vir sob a forma de um afago de mão, de um beijo ou de lhe porem a tocar um dos seus discos preferidos."


Não é uma mão de apoio, ou um ombro amigo que diz, quase religiosamente, «não, meu caro, não há nada a temer.»; também não é um sussurro que tonifica e que degusta, o "nada" mórbido da frase, com um sorriso malicioso no rosto «NADA.... a temer.» Nothing to be Afraid Of, do Julian Barnes, pode até pender para ambos os lados, certas vezes, até cair em sofismas, mas somente de propósito, investindo-se de verdade em cada ponto, com intenção de desconstruí-los, anuí-los, descartá-los, ou, apenas, cortá-los pela tangente.

As reflexões suscitadas, através do seu próprio ponto de vista, do diálogo com seu irmão, ou da extensa lista de autores citados, corta pelos campos da morte, memória, imaginação, vida, arte, religião, ficção, e muitos outros temas. São capítulos em sua maioria curtíssimos, mas, densos; ao ponto de que um “capítulo” de poucos parágrafos, que leva cinco minutos (ou menos) sendo lido, te coloque por muitos minutos adicionais em um estado reflexivo tenso, a pensar, a anotar, a dialogar com o livro; a relembrar, e também a inquirir sobre a sua própria vida e existência no geral.

Não há muito o que abordar em questões estilísticas, é escrito como um grande ensaio pessoal, ou livro de memórias, e a voz vai tornando-se cada vez mais familiar conforme você avança na leitura. Toco nessa questão da familiaridade da voz, pois se trata justamente dela, com a adição da estuturação e da construção, que fazem com que esse livro não se encaixe em nenhuma convenção ou gênero.

Aqui no Goodreads, por exemplo, a primeira prateleira onde coloca-se o livro, é na fileira da Nonfiction. No entanto, os capítulos finais tratam justamente da ambiguidade conquanto o que é ou não ficção; da área nebulosa entre ficção, imaginação, e realidade. É posto, e comprovado empiricamente pelo Barnes, através da comparação das lembranças dele e do irmão, aquilo que é quase saber comum, que a memória pouco tem de factual, ela é montada por nós na nossa cabeça, principalmente as mais antigas.

Portanto, quando escrevemos, a partir de nossas memórias, estamos nos distanciando ainda mais da realidade, ou, pelo contrário, furando a colcha da memória? E isso importa para os fins literários?

Spoiler "Para os jovens — e particularmente para o jovem escritor — a memória e a imaginação são totalmente distintas e de categorias diferentes. Num primeiro romance típico haverá memórias diretas (emblemáticas como o inesquecível embaraço sexual), momentos em que a imaginação tratou de transfigurar uma memória (talvez o capítulo em que o protagonista aprende uma lição sobre a vida, enquanto na realidade o futuro romancista não aprendeu nada) e momentos em que de repente, para espanto do escritor, a imaginação apanha uma corrente ascendente e o voo maravilhoso, imponderável, que é a base da ficção, se produz com deleite. Estas diferentes espécies de verdade aparecem distintamente ao jovem escritor e a maneira de as juntar constitui matéria de ansiedade. Para o escritor mais velho, memória e imaginação parecem diferenciar-se cada vez menos. Não é porque o mundo imaginado esteja realmente muito mais próximo da vida do escritor do que ele ou ela quer admitir (um erro comum entre os que dissecam a ficção), mas exatamente pela razão oposta: a própria memória acaba por, mais do que nunca, parecer muito próxima dum ato de imaginação. O meu irmão desconfia da maior parte das memórias. Eu não desconfio, prefiro ver nelas o labor da imaginação, que contém uma verdade imaginativa e se contrapõe à verdade naturalista. Ford Madox Ford podia dizer grandes mentiras e grandes verdades, ao mesmo tempo e na mesma frase."

"A história, ou história potencial, ficaria estragada. Conheço um escritor que gosta de se deixar ficar nos bancos de jardim a ouvir conversas; mas, assim que aquilo que ouve ameaça revelar mais do que profissionalmente lhe interessa, afasta-se. Não, a ausência e o mistério são para nós (eu e ele) resolvermos."

"Um Bertie que se transformou em Bert; um voluntário tardio; uma testemunha silenciosa; um sargento exonerado como soldado; uma fotografia desfigurada; um possível caso de remorso. É aqui que trabalhamos, nos interstícios da ignorância, na terra da contradição e do silêncio, e que tentamos convencer-vos com aquilo que aparentemente é conhecido. Resolver — ou tornar útil e viva — a contradição e tornar o silêncio eloquente."


"A ficção é feita por um processo que combina liberdade total e controlo absoluto, que equilibra a observação precisa e o jogo livre da imaginação, que utiliza mentiras para dizer a verdade e a verdade para dizer mentiras. É ao mesmo tempo centrípeta e centrífuga. "
"Um romancista é alguém que não se lembra de nada, mas regista e manipula versões diferentes daquilo de que não se lembra."


Com o auxilio de amigos, do irmão, Montaigne, Jules Renard, Gustave Flaubert, Doris Lessing, Émile Zola, Somerset Maugham, Cicero, Wittgenstein, e muitos outros, Barnes fica nas margens embrunecidas da linha traçada dos gêneros literários, não inaugurando, mas, mesmo que minimamente, ajudando a consolidar o “livro” moderno, após a ascensão, declínio e queda do Romance; pelo menos, é assim na minha cabeça. Se há algo de verdadeiro nisso, só o tempo irá dizer. Como diz o Renard, "Poil de Carotte* e eu vivemos juntos, e espero morrer antes dele."


Para concluir: há livros marcantes, há aqueles que moldaram e sustentaram nosso gosto pela literatura, outros onde a técnica ou o deleite estético arrebatam, catárticos, aos moldes aristotélicos. Fora — mas certas vezes também junto destes — há aqueles que por alguma razão nos tocam intimamente, pessoalmente; e alguns, vão além, mais fundo, objetiva e concretamente mudam algo na sua vida; este foi um desses casos.

Um verso ficou na minha memória, uma verso que aparece nas Odes do Horácio, tratando de como o tempo flui inexoravelmente, e como certas vezes o faz (Horácio/Eu-Lírico) levantar no meio da noite e parar todos os relógios. Frequentemente, de tempos em tempos, algo parecido me acometia, desde a adolescência, quando meu “sentido de mortalidade” despertou numa aula de ciências no Ensino-Médio.

Desde lá, me acompanha (ou supostamente, acompanhava), me levantando no meio da noite, com a vertigem, a aflição e o apavoro clássico que só a sensação de finitude consegue passar. Vinha sempre na madrugada, como um gancho que nocauteia o boxeador, me tirando das profundezas do “Hmm… que soninho gostoso” nos campos verdes do Sonhar, para o “Vou morrer. Sou mortal. Não há escapatória”, no escuro do quarto, suando frio com as mãos na cabeça.

Isso se repetiu ao longo de anos, aumentava e diminuía de frequência sem obedecer leis específicas. Mas, desde que li o livro, a fundo, e realmente pensei, dialoguei, ouvi, conversei, com o Jules, com Cicero, Barnes, ao longo desse livro, simplesmente nunca mais me aconteceu. Ainda penso na finitude, na efemeridade, mas de uma maneira menos aterradora. E melhor, não mais me desperta no meio da noite com um gancho psicologicamente mais forte que o do Lomachenko.

Mesmo que o Barnes diga, e parece realmente crer, que falar sobre a morte não diminui em nada o medo, o impacto, a vontade de remar contra a maré, há algo sim, que permeia esse tipo de conversa, esse tipo de livro. Para mim, foi libertador, disruptivo, fascinante, pela força exercida na minha vida real, através das páginas, das palavras, de diversos outras pessoas, das mais diversas profissões, dos mais diversos cursos, e dos mais diversos tempos. Livrasso.

Termino com o supracitado poema das Odes de Horácio (busquei aqui):

Lembro uma menina…
Como pode…
outrora fui a pequena Resi,
e um dia me tornarei uma velha?
…Se Deus quer que seja assim, por que me permite
vê-lo? Por que não o esconde de mim?
É todo um mistério, um mistério tão profundo…
Sinto a fragilidade das coisas no tempo.
Dentro do meu coração, sinto que não deveríamos nos agarrar a nada.
Tudo escorrega por entre os dedos.
Tudo o que tentamos pegar se dissolve.
Tudo desaparece como névoa e sonhos…
O tempo é uma coisa estranha.
Quando não precisamos dele, não é nada.
Depois, de repente, não existe outra coisa além dele.
Rodeia-nos por todos os lados. Está também dentro de nós.
Insinua-se através da nossa face.
Insinua-se no espelho, escorre pelas minhas têmporas…
E entre você e mim escorre em silêncio, como uma ampulheta.
Oh, Quinquin,
Às vezes o sinto fluir inexoravelmente.
Às vezes me levanto no meio da noite
e faço parar todos os relógios…"