A review by katya_m
Um Diário Russo by John Steinbeck

"Andávamos deprimidos, não tanto com as notícias como com a forma como eram dadas. Porque as notícias já não são notícias, pelo menos aquelas que atraem mais atenção. As notícias transformaram-se em matéria de opinião especializada. Um homem sentado a uma secretária em Washington ou Nova Iorque lê os telegramas das agências e reformula-os de acordo com o seu próprio quadro mental e dá-lhes um título. Aquilo que muitas vezes lemos como notícia não é mais do que a opinião de um entre meia dúzia de especialistas sobre o que essa notícia significa."

Que Steinbeck é um grande escritor, é algo de que ninguém duvida. Com este seu Diário Russo confirma-se que esse grande escritor tem uma veia de jornalista - embora tenha também uma aversão ao jornalismo convencional e contemporâneo, pelo que acaba por fazer uma reportagem que se lê mais como um romance do que qualquer outra coisa.
O seu mote, de dar a conhecer aquilo que os olhos vêem, mais do que aquilo que a cabeça processa após esse momento é genuíno, acredito, embora impraticável na sua totalidade. Mas a premissa básica foi cumprida: percorrer terras russas e olhar às pessoas que as habitam; procurar perceber quem é o povo russo. Claro que pelo caminho é inevitável que se cruze e acabe por descrever aquela que era a máquina burocrática soviética (tão semelhante a outras máquinas burocráticas - todas inerentes a regimes conservadores e com certa queda para as ditaduras e os fascismos); é inevitável que denuncie a prepotência do regime; mas o seu foco não está nunca aí.
Steinbeck perde-se nas descrições da terra e das gentes, da hospitalidade de russos, ucranianos, georgianos - come e bebe a sua conta, festeja como se não houvesse amanhã e dá a conhecer toda uma faceta humana do povo, sem [pre]conceitos expressos.

"O mais difícil do mundo para qualquer pessoa é provavelmente a simples observação e aceitação daquilo que acontece. Deformamos sempre as nossas imagens com as nossas expectativas, esperanças ou receios."

O seu sentido de humor típico polvilha aqui e ali todo o texto, proporcionando momentos de comic relief que ajudam a suportar o retrato de um país devastado pela guerra, uma população a cicatrizar da barbárie a que "foi" duramente sujeita. Esse humor ajuda o leitor a tragar imagens duras, muito duras, do pós-Guerra e consequente Cortina de Ferro: os seus efeitos naquela que é a personalidade de uma nação, os seus efeitos na vida de cada indivíduo.

"À tarde atravessámos a praça e fomos até um pequeno parque perto do rio e aí, debaixo de um grande obelisco de pedra, havia um jardim de flores vermelhas, e debaixo do jardim estava sepultado um grande número de defensores de Estalinegrado. Havia pouca gente no parque, mas estava uma mulher sentada num banco e um rapazinho de cinco ou seis anos de pé encostado à vedação, a olhar para as flores. Esteve ali tanto tempo que nós dissemos a Chmarski que queríamos falar com ele.
Chmarski perguntou-lhe em russo: «Que estás aqui a fazer?» E o rapazinho, sem sentimentalismo, com uma voz natural, disse: «Vim visitar o meu pai. Venho vê-lo todas as noites.»
Sem dramatismo, sem sentimentalismo, era uma simples constatação de facto, e a mulher sentada no banco levantou os olhos, confirmou com a abeça e sorriu. E pouco depois ela e o rapazinho atravessaram o parque de regresso à cidade em ruínas."

Lamentavelmente, claro, muito fica por dizer e mostrar. Não só o trabalho é sintético por vontade dos autores, como mais sintético se torna por imposição política - ficam de fora as imagens mais cruas, de espécie literária ou outra, dos estropiados, dos presos de guerra, dos famintos, e da reconstrução e "limpeza" operada pelo regime estalinista.

"(...)na União Soviética, o papel do escritor é estimular, glorificar, explicar e de todas as formas possíveis promover o sistema político soviético. Ao passo que na América, e na Inglaterra, um bom escritor é o cão de guarda da sociedade. O seu papel é satirizar-lhe os desconchavos, atacar-lhe as injustiças, estigmatizar-lhe as falhas. E é por isso que, na América, nem a sociedade nem o governo simpatizam muito com os escritores. São duas formas diametralmente opostas de encarar a literatura. E convém dizer que, no tempo dos grandes escritores russos, de Tolstói, de Dostoievski, de Turguénev, de Tchékhov e do jovem Gorki, acontecia o mesmo com os russos."

É o diário possível, e satisfatoriamente imparcial, por parte de um escritor com notórias preocupações sociais e de um fotógrafo destemido, exigente e curiosamente trágico - uma excelente combinação de forças.

"E pronto. Era mais ao menos isto que queríamos ver. Verificámos, como tínhamos suspeitado, que os russos são pessoas, e, como pessoas que são, são muito simpáticos. Aqueles com quem falámos odiavam a guerra, queriam o mesmo que todas as pessoas querem - boas vidas, mais conforto, segurança e paz.
Sabemos que este diário não vai agradar à esquerda ortodoxa nem á direita boçal. A primeira vai dizer que ele é anti-russo, a segunda que pró-russo. Superficial é, sem dúvida, e não podia ser de outra maneira. Não temos conclusões a tirar, a não ser que o povo russo é como todos os outros povos do mundo. Alguns são certamente maus, mas na sua grande maioria são muito boas pessoas."