A review by katya_m
As Mulheres que Celebram as Tesmofórias by Maria de Fátima Silva, Aristophanes

Perante a ameaça de vingança por parte das Tesmoforiantes, que crêem a mulher como representada na obra de Eurípides uma ofensa, o tragediógrafo em questão procura levar alguém a defender a sua causa junto destas mulheres.
A piada aqui reside em diversos graus de interpretação: histórico, textual e crítico. A saber, primeiro: as Tesmofórias (que Eurípides planeia invadir) são as festas ou o festival das sementeiras — dedicado a Ceres — e reservado às mulheres; segundo: os colaboradores de Eurípides são personagens <i>sui generis</i> e obscenas, dotadas de um calão baixíssimo cuja missão é a de interferir num ritual feminino sagrado; acresce a isto que o texto está pejado de referências euripidianas a todo o tempo deturpadas pela fala destas personagens; terceiro: Eurípides é tido como um dos expoentes da tragédia grega e da representação das aspirações e motivações femininas, o que eleva esta crítica (dado o muito pouco conhecimento que temos do que a rodeia) a um nível difícil de apreciar.

Já eu não sou particularmente versada na obra de Eurípides para ler este texto ao nível de pormenor que exige. Mas, tal como em Ésquilo (que aprecio e sempre consegui estudar em maior profundidade), reconheço neste último uma vertente muito atraente (embora não fosse e não seja por muitos assim encarada), que serve de base ao texto das Tesmofórias, e que lhe permitia elaborar obras com recurso a personagens femininas que quebram estereótipos — mulheres que infringem regras e contestam o poder masculino como Medeia, Efigénia ou Helena. Pois, Aristófanes pega precisamente nesta faceta de Eurípedes para explorar os arquétipos antigos e censurar a imagem feminina quasi emancipada que o autor advoga (não o faria conscientemente já que nunca esperaria, por um lado, que as mulheres alguma vez o lessem, e por outro, que jamais tivessem liberdade para o criticar*), e isso não me pode agradar muito:

<i>(...)hoje em dia, Penélope não se pode apontar uma única entre as mulheres, mas Fedras são todas elas sem excepção.</i>**

Daqui resulta uma sátira de mau gosto (acho que sátira falogocentrista seria o termo) —mesmo tendo em conta que é composta por e para homens, e interpretada exclusivamente por eles. Mas esta composição não é única no seu género, nem tão pouco a única a que deitei mãos, e, como tal, isso não é motivo suficiente para despachar esta obra. É, aliás, típico de Aristófanes, e da comédia grega, recorrer à troça (ou ironia, se preferirem) sobre as mulheres, mas normalmente o empreendimento sai mais eficaz — sim, também eu tenho cá a minha capacidade de encaixe. <i>Lisístrata</i>, talvez porque se compõe de uma vertente política mais evidente na qual o autor era exímio, é um bom exemplo disso mesmo. Mas em <i>As mulheres que celebram as Tesmofórias</i> falta algum espírito chistoso que se substitui pelo humor másculo/machista que retrata as mulheres (sejam elas figuras femininas ou efeminadas) como megeras bêbedas, debochadas e, a todos os níveis, absolutamente incapazes de governo. Pessoalmente, a todos estes séculos de distância, isto não me chega.

No que concerne a literatura clássica não sofro de grandes pruridos (nem seria correto tê-los quando a maioria das obras clássicas se presta a várias leituras), mas, neste caso, à parte a materialidade do texto — que certamente permitia uma dose de humor físico —, os mecanismos cénicos que o acompanham e o testemunho de rituais e simbolismos associados às mulheres na época de criação e encenação desta peça (muitas vezes é esta a única forma de recuperar este tipo de evidências), não lhe encontro mais pontos positivos.

<i>Ora bem: se somos uma peste, porque é que vocês se casam connosco, se de facto somos mesmo uma peste? Porque é que nos proíbem de sair, de pôr o nariz de fora e em vez disso se empenham em guardar a peste com tanto cuidado? Mal a pobre mulher sai, e vocês descobrem que ela está fora de portas, ficam completamente doidos; quando deviam mas era dar graças e esfregar as mãos de contentes por saberem que realmente a peste se tinha ido embora e já não a encontrarem lá dentro. Se passamos a noite em casa de alguém, cansadas de uma festa, não há quem não venha rondar os leitos, à procura dessa peste. Se nos debruçamos à janela, lá andam vocês a tentar ver a peste; e se, por vergonha, nos metemos para dentro, ainda mais desejosos ficam todos de verem a peste debruçar-se outra vez. Em resumo: é evidente que nós somos muito melhores do que vocês. </i>


*Da mesma forma, tantos outros dramaturgos pela história fora criaram grandes heroínas que defenderam aguerridamente sem acreditar alguma vez que uma mulher de carne e osso se lhes comprasse, sem jamais interceder pelas mulheres como o fizeram pelas figuras míticas que criavam.
**Por oposição à dedicação e dignidade de Penélope, Fedra (enquanto mulher adúltera e transgressora do código social) é tida como protótipo de mulher debochada e sem lei.