A review by jiangslore
A Mão Esquerda da Escuridão by Ursula K. Le Guin

adventurous emotional hopeful inspiring
  • Plot- or character-driven? A mix
  • Strong character development? Yes
  • Loveable characters? Yes
  • Diverse cast of characters? It's complicated
  • Flaws of characters a main focus? No

4.0

[4/5] 

Desde quando li “Aqueles que Abandonam Omelas”, tive vontade de ler mais da Úrsula K. Le Guin. Não estava planejando que minha próxima leitura da autora fosse “A Mão Esquerda da Escuridão”, mas, como surgiu a oportunidade de participar de uma leitura coletiva dele, acabei resolvendo ler. E fico feliz em dizer que não me arrependi, pois gostei bastante do livro. Apesar de a questão do gênero ser colocada como um ponto central na sinopse, não foi o que mais gostei do livro; mesmo pensando que a abordagem da autora teve muitos aspectos positivos. 

Como é dito na introdução escrita pela a autora, a ideia da ficção científica é mostrar certos aspectos já existentes no ser humano e em nossa sociedade. Ou seja, a intenção não é dizer como as coisas deveriam ser; e não há, necessariamente, a vontade de criticar ou transformar algo. Acredito que ter essa noção é importante para não esperar do livro algo que ele não se propõe a entregar — é importante entender que, embora a perspectiva de gênero apresentada no livro seja interessante e gere reflexões, ela não parece ser formulada com uma finalidade primordial de criticar a estrutura de gênero da nossa sociedade. 

Além disso, há uma questão que não tenho certeza se deve ser atribuída à escrita original ou à tradução: são usados muitos termos que podem gerar um desconforto compreensível em leitores dos dias atuais. Eu não diria que elas possuem uma intenção pejorativa dentro da própria obra, até porque são palavras usadas para descrever criaturas que não são da mesma espécie que nós. E, claro, para o mainstream da época da publicação de “A Mão Esquerda da Escuridão” — para o mainstream, mas não para algumas subculturas, visto que a publicação foi no mesmo ano das manifestações de Stonewall — a perspectiva apresentada no livro é quase revolucionária. Mas é normal que, décadas depois, alguns termos não sejam mais considerados tão adequados. Essa questão não fez com que eu não gostasse da leitura, mas acredito que ela deve ser mencionada, especialmente considerando o tipo de público que a sinopse da obra atrai. 

Nesse contexto, também é importante mencionar que um dos narradores, Genly Ai, muitas vezes associa o feminino com características negativas. No início da leitura, pensei que tal fato era atribuído ao preconceito do próprio personagem, nascido e criado em uma sociedade binária. Entretanto, esse aspecto não foi completamente revertido até o final do livro, apesar de se tornar bem menos frequente. 

Acredito que o que mais gostei em “A Mão Esquerda da Escuridão” foi a construção de mundo, rapidamente seguida pelo desenvolvimento dos dois protagonistas e pela escrita. A construção de mundo é ótima, pois, ao mesmo tempo em que são apresentados aspectos relevantes do planeta Gethen para a missão de Genly Ai, também são mencionadas e desenvolvidas coisas que parecem ser parte da rotina; algo natural do planeta. 

Há vários aspectos do planeta que, ao se entrelaçarem com o enredo, tomam a forma de alegorias. Para algumas pessoas, isso pode consistir em uma “falta de desenvolvimento”, mas eu não concordo com essa perspectiva. Como disse anteriormente, o objetivo da autora não era criticar ou mudar aquela sociedade fictícia. O que ela pretendia era mostrar o seu funcionamento, tanto em coisas positivas quanto em coisas negativas. Por isso, acredito que mostrar certas questões na obra não trazia, consigo, uma necessidade de crítica ou desconstrução desse tipo de local.
 
Um dos temas abordados no livro é a ambivalência, ou a necessidade do humano de viver nela, e, ao mesmo tempo em que o livro aborda esse assunto, ele é narrado por dois pontos de vista, por duas pessoas que são, simultaneamente, humanos e alienígenas: Genly Ai e Estraven. Eu adorei ver as diferenças entre os pontos de vista, que, muitas vezes, se encaixavam, em outras, se contradiziam. No início, vemos que os personagens observam suas interações de formas muito diferentes, o que cria problemas de comunicação que são muito bem desenvolvidos, porque nós, como leitores, temos acesso aos pensamentos e preconceitos que levaram determinado personagem a pensar ou agir de certa forma. 

À medida que o livro avança, vemos mais casos em que os pontos de vista se complementam — às vezes, o que não era mencionado ou explicado por um, por motivos expressos ou implícitos, era pelo outro. E essas escolhas deles no que revelar ao leitor, além de transformarem a leitura em algo mais dinâmico, serviu muito bem para entendermos os personagens de forma ainda mais profunda. Também há um desenvolvimento profundo do relacionamento entre esses dois personagens, que, em certo ponto, torna-se o foco da narrativa. Penso que é importante mencionar que os personagens coadjuvantes não possuem o mesmo nível de desenvolvimento, mas, como o livro é muito focado nos personagens principais, isso não atrapalhou tanto a leitura. 

O enredo do livro é bem interessante. Ele apresenta alguns aspectos bem clássicos, como a presença de uma profecia no início da história — que demonstra que o que é previsto vai ocorrer, mas, com certeza, não será da forma que se espera. Nada que é previsto em uma visão do futuro ocorrerá de forma direta e reta. Apesar de não ser muito inovadora, esse tipo de narrativa é algo que gosto bastante; principalmente quando o desenvolvimento é bom (o que, na minha opinião, foi o caso). 

Em suma, “A Mão Esquerda da Escuridão” foi um livro que me agradou bastante, apesar de eu, objetivamente falando, reconhecer que há aspectos negativos nele. Úrsula K. Le Guin tem uma forma extremamente interessante de abordar as contradições e estranhezas que formam um ser humano — algo que só vi ser feito com esse nível de excelência e nessa forma de ficção por uma única pessoa: N. K. Jemisin. Acredito que pessoas que gostam da obra de uma vão gostar dos livros da outra. E, se você não conhece nenhuma delas, definitivamente recomendo ambas. 

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