A review by cetian
História da Sexualidade III: O Cuidado de Si by Michel Foucault, Manuel Alberto

4.0

Neste último volume, Foucault liga toda a história que escreveu até aqui à modernidade, à criação da sexualidade e sexologia - algo que tomamos como certo mas que também é cultural (os termos são muito recentes na história humana).

Surpreende-nos com uma inesperada ligação (feita numa longa e tortuosa transição). A discursificação do cristianismo, que foi tratanto o sexo no confessionário através dos pecados rigorosamente catalogados, onde já as palavra pederastia e pederasta tinham sido herdadas dos gregos ganhando contornos malignos deu lugar às patologias da sexologia.

Antes ainda de Freud, a obsessão em descobrir parafilias e patologias sexuais deu-nos a fauna classificativa que ainda hoje usamos e muita que abandonámos visto que hoje seria considerada insultuosa ou cientificamente aberrante. Invertido era palavra usada quer por clérigos quer por sexólogos. Quando os psicanalistas começam a sentar as pessoas no divã é com a ideia de que os pacientes se devem libertar das ideias negativas, das leis que a o cristianismo criou, associando o sexo ao pecado, e com a culpa impedindo o prazer sexual de ser experimentado na sua plenitude. Era uma ideia utópica, que foi reinventado de muitas maneiras, de que libertando da culpa as pessoas, a sexualidade seria melhor. A ideia surpreendente, que Foucault traz é que o método da psicanálise foi precisamente o de criar discurso, apresentando esta discursificação específica alguma continuidade ou pelo menos pontos de contacto com o cristianismo. Foi, mais uma vez, fazer as pessoas confessar. Escutá-las, fazê-las dizer o que tinham feito, com quem. Ainda que não no sentido de se sentirem culpadas, mas no sentido oposto, de que as pessoas deixassem de se sentir-se culpadas.

Nunca mais a sexualidade no ocidente deixaria, até hoje, de ser vivida como um discurso de si.

Esta obra imensa de Foucault, estes três volumes, são uma obra de história do pensamento, como o autor avisa no início. Abre horizontes e dá imensa bibliografia para percebermos de onde vêm as limitações da nossa cultura - com isso também perceber pistas para nos superarmos. É um trabalho muito bem fundamentado, rigoroso e, felizmente, muito bem escrito. É um prazer ler Foucault.

Esta é a nossa história, a da cultura ocidental (à falta de melhor palavra). Fico com uma ideia de que houve outros percursos. A moral foi uma moral masculina, as relações de poder foram desiguais. O sexo foi sobretudo discurso. E acabámos por nos interessar sobretudo pela sua patologia. Quando nos interessámos finalmente pelo sexo, inventámos-lhe uma sexualidade e uma sexologia. O que Foucault chama de "scientia sexualis". Noutras culturas, como a indiana, a chinesa e a árabe (até há uns séculos atrás, a cultura árabe que produziu o Jardins Perfumados) inventou-se o que Foucault chamou de Ars Erotica. Nessas culturas, o importante não foi descobrir patologias, invertidos. Foi escrever manuais sobre como o sexo, vê-lo como uma forma de arte e, em alguns momentos, como uma forma de transcendência e algo de espiritual.

Para mim, um exemplo onde se nota a cristalização da nossa cultura de "sexualidade" e "discursificação" é na produção obsessiva de discurso sobre pontos erógenos. Que continua na discussão sobre, por exemplo, o ponto G. Sobre se existe, não existe. Tudo isto, sempre, como discurso, "conversa", "tema", algo "académico", "conselhos". Ao ponto de de discutir que pressão coloca falar-se spobre algo que assume contornos de mito, que novas expectativas coloca sobre a mulher, o casal, a "relação sexual", o "prazer", o "sexo". E entretanto dizendo a frase sacramental da sexualidade ocidental, o enorme paradoxo:

"O maior ponto erógeno é o cérebro".

A contrastar a esta imprecisão obsessiva do discurso da "scientia sexualis" ocidental, a ars erotica oriental tem uma imprecisão serena, que é notória por exemplo no kama sutra. As posições sexuais sugeridas em ilustraçoes antigas. A irrealidade que por vezes assumem, são uma delícia. Não interessa nenhuma noção de rigor anatómico. Estimulam a imaginação. Existe uma ideia de arte erótica, que serve como forma de estimular a líbido. E é isso que se procura fazer, de forma prática e directa: estimular quem vai ter sexo. Numa analogia, se houvesse um conselho como, existe um ponto (chamemos-lhe o ponto da manga, já que por exemplo os genitais são por vezes comparados a frutos) que é bom estimular, não é dado como sexologia. Como um conselho médico, de anatomia. É dado como um conselho de um guru do prazer. E ao ser lido, já é lido com prazer. O próprio texto já se aproxima do erótico. A ideia de ficar ansioso por ler o kama sutra ou por receber conselhos para o prazer não faz sentido.

O Zizek diz que hoje ao contrário do que acontecia no tempo de Freud, os psicanalistas dizem aos seus pacientes que são livres de dizerem que não têm prazer. Que se não são felizes, que se não estão a ter prazer a toda a hora, isso é normal, e podem expressá-lo livremente. Porque existe uma pressão enorme para o gozo.

Tempos estranhos.

As traduções da Relógio d' Água são excelentes.