A review by emannuelk
O Desaparecido ou Amerika by Franz Kafka

4.0

Não lia nada do Kafka há muito tempo, apesar de ser um autor que foi importante no meu processo de formação. Esse é o fragmento do que seria o primeiro romance dele, e, consequentemente, bastante diferente da maior parte das coisas que pensamos quando temos em mente sua obra. Ao menos, acho que poucas pessoas relacionam o nome de Kafka a circos e lutadoras de jiu-jitsu. Mas alma dos seus escritos está aqui, aquela coisa que chamam de kafkaesco. E, na verdade, esse livro nos dá uma perspectiva bem distinta do que pode significar esse termo, que geralmente é associado a burocracias infinitas, um absurdismo vagamente surrealista e narrativas labirínticas. Mais do que qualquer das obras do autor que lembro, essa mostra como o que está no cerne da sua escrita é a crítica ao capitalismo. Ao se voltar à grande pátria capitalista, os EUA, Kafka tem várias oportunidades de abordar como essa é a origem de tantos problemas societais. O desemprego, a miséria, a impotência frente ao cerco generalizado, todos esses elementos estão presentes. Essa é, possivelmente, a obra mais Dickensiana de Kafka. Como os protagonistas de Dickens, o de Kafka sai de uma situação social confortável e cai aos patamares mais precários da sociedade, é imigrante, proletário, sem-teto. Ao contrário de Dickens, no entanto, Kafka não podia se enganar quanto à possibilidade de escape. Se o romancista inglês arranjava finais felizes quando o personagem miserável reencontrava alguém do seu passado, um amor ou patrono para tirá-lo da miséria, o tcheco não tem essa ilusão. Não existe saída do fundo do poço, as pessoas sequer voltam a se encontrar, o mundo é grande e sempre se pode descer mais baixo ainda. Diante disso, não é de se surpreender que seus romances nunca tenham chegado a suas conclusões.
Cabem também algumas palavras quanto à edição. A tradução é boa, quando consideramos o texto e sua leitura, bastante fluida. Mas é uma pena que não tenha sido feita pensando nos leitores que poderia agradar. É interessante trazer as variações das diferentes versões do texto em notas de rodapé, mas seria ainda melhor, do ponto de vista do leitor comum, que essas notas apontassem coisas como as incongruências do conhecimento de Kafka sobre os EUA, esclarecimentos de alguns aspectos que hoje são um tanto antiquados ou, ainda melhor, que se perdem na tradução, invariavelmente. Por exemplo, em um dos fragmentos, o protagonista adota o pseudônimo "Negro", mas não temos como saber se isso se refere a Schwartz, um sobrenome relativamente comum de origem alemã, ou Black, que indicaria a tomada de uma personalidade anglófona ao mesmo tempo que uma referência às questões raciais dos EUA. Esses recursos, que poderiam deixar a leitura mais rica, são trocados por um posfácio extremamente academicista.